Mariana Ferreira began her artistic career at TEUC - The Students' Theatre of the University of Coimbra. She has a degree in Theatre - actors - from the School of Theatre and Cinema of Lisbon and a postgraduate degree in Writing Arts from the Faculty of Social Sciences and Humanities of the University of Lisbon.
Since 2015 she has been working professionally in performing arts. She has worked with artists such as Bouchra Ouizguen, Alex Cassal, Keli Freitas, Raquel André, Monica Calle or Mário Coelho.
In 2015 she made her debut as a creator with the staging and dramaturgy of Musgo e Urze, a show presented at Amigos do Minho in Lisbon.
In 2018 she is part of the IV edition of the TNDMII Theatre Writing Laboratory, directed by Rui Pina Coelho. There she writes Pin my Places published by Bicho do Mato / TNDMII editions. The text is presented in the same theatre in October 2021 staged by Rui Horta.
She was one of the artists selected to integrate the International Laboratory and Festival Linha de Fuga 2020 and one of the two Portuguese playwrights to integrate the special edition of dramaturgy of the École des Maîtres 2020/2021, where she wrote the text Et cetera, et cetera.
Since 2020 she has been working on her on-going project Home, an investigation into the word home, focusing on the concept of identity.
In 2023 she writes and stages Ó Môr for TUP - Theatre of the University of Porto, presented at Confederation. Also in 2023, she creates/ the Dramaturgical Cooperative with Filipa Matta, a meeting space where several artists share and support each other in the writing and thinking components of their personal creations.
In her research she uses memory and biography as matter, which can be questioned, subverted or manipulated, using the digital and the poetic as ways of thinking and understanding worlds.
Home is an installation and a performance that tries to answer the question “What is a Home?”. From dozens of meetings with people from around the world, Mariana Ferreira inhabits a garden of plants and videos of the people she met, while digitally and poetically traveling through her own story.
‘Estou cansada’ talvez seja a frase que mais repito na vida.
Alguém pergunta ‘Tudo bem?’ e eu ‘Ai, estou cheia de trabalho, estou
tão cansada’.
Que é quando estou realmente cansada que estou mais feliz, já o sei há
muito tempo.
É exausta que abandono medos, obsessões,
pensamentos intrusivos, auto-boicote.
É cansada que desisto, desistir como coisa boa, como desconexão do que me impede de avançar, de evoluir, mas mesmo assim, digo que estou cansada como quem se queixa.
Digo ‘estou cansada’ como quem diz que o propósito da existência é o
casamento entre produção e valor humano.
Digo ‘estou cansada’ como quem diz que não sou remunerada devidamente.
Digo ‘estou cansada’ como quem demonstra que tem trabalho.
Digo ‘estou cansada’ para dizer que estou ativa, que sou desejada, que
estou envolvida.
Digo que estou cansada para dizer que existo.
Quando digo ‘estou cansada’ estou a queixar-me ou a vangloriar-me?
Quando digo que estou cansada, estou cansada? Ou quando estou mesmo
cansada, não digo que estou cansada porque estou demasiado cansada
para dizer que estou cansada?
Juro que realmente não sei.
Talvez dizer ‘estou cansada’ se tenha transformado num mantra. Repetição diária para máximo efeito.
Hmm, mas como flutuo quando estou cansada.
Quão realizada, quão relaxada.
Os olhos semi-cerrados, os músculos dormentes.
O corpo movimenta-se autónomo,
Não sinto os pés, tenho as mãos inchadas, a cara rosa.
A mente expande-se ao mesmo tempo que a imaginação.
Penso coisas incríveis. Sinto-me criativa, sonho acordada, fantasio as
melhores criações, as melhores relações.
Certamente felicidade.
Sinto-me capaz, esperançosa.
A exaustão proporciona-me transcendência, fica mais barata que drogas
e é mais duradoura que orgasmos.
A exaustão muda o ponto de vista sobre tudo.
A exaustão liberta-me de mim mesma.
Escrever cansa-me. Vou ter de parar. Tenho de descansar que esta
semana foi uma canseira.
É muita coisa, muita coisa...
Leitor,
Obrigada pelo teu tempo. Não tens nada que estar a ler estas palavras, tens mais que fazer. Hoje é dia 31 de Dezembro e confesso que não me apetece fazer nada.
Há muitos dias que penso sobre o que escrever.
Nunca tive o hábito da escrita, nunca acreditei que soubesse ou fosse capaz de escrever. Por isso, e tendo em conta que comecei a escrever há cerca de dois anos, comecei por aquilo de que podia falar - eu.
Escrever sobre mim acarreta culpa em cada palavra. Quando estava na escola superior de teatro e cinema de Lisboa tive um professor chamado Jean-Paul Bucchieri que questionava a obsessão dos artistas em trabalharem sobre si próprios e sobre as suas biografias. Como nunca tinha pensado naquilo e como não tinha opinião sobre o assunto, integrei este pensamento, e as inquirições do Bucchieri continuaram a reverberar até hoje. Lembro-me de pensar nos livros, músicas, encenadores, filmes que gostava, nos espectáculos que mais tinha gostado de ver, a arte de que não me esquecia, no fundo, ponderei sobre o ato da criação e a matéria artística. De que falavam todos estes criadores? Porque faziam determinadas escolhas e não outras? Durante muito tempo estive bloqueada. Achava que propor performances sobre mim mesma era preguiçoso, repetitivo e desinteressante, então distanciei-me das coisas que criava e tornei-me cínica, pedante. Bloqueei-me.
Fui infeliz.
Culpa.
Quando eu tinha 6 anos, os meus pais meteram-me no escutismo, que pratiquei (frequentei? permaneci? Tenho dificuldade em escolher o verbo mais acertado por falta de tempo em enveredar na própria natureza do escutismo. É casa? É instituição? É prática?) até aos 16 anos. No escutismo fui muito feliz e muito infeliz, mas isso são outras conversas. Deixei de acreditar em Deus aos meus 13 ou 14 anos, precisamente por andar no escutismo e ter contactado com outros jovens mais velhos que questionavam a figura de Deus e, sobretudo, da igreja católica. A igreja católica fascina-me. É difícil não admitir a importância desta instituição na construção da minha biografia. Para ser escuteira, tinha de frequentar a catequese. Para ser escuteira e aluna da catequese, tinha de me confessar. Tive de me confessar frequentemente ao longo de 10 anos.
Confesso que nunca contei a absoluta verdade quando me confessava. Não conseguia. Sempre quis ter segredos, sempre tive de ter segredos. Durante todo o meu desenvolvimento senti-me oprimida e pressionada em divulgar coisas que eu não queria que fossem públicas: os meus pecados, os meus pensamentos, os meus desejos, o que fiz ao dinheiro do almoço. Para meu alívio, crescer significou ter direito aos meus segredos.
Menti aos padres, menti ao pai, menti à mãe, menti aos amigos. Acho que sempre pensei que se revelasse realmente os meus segredos, seria muito pior. Para mim, claro. Resisti à endoutrinação católica não por resistência, mas por vergonha.
Culpa.
Quando comecei a escrever, criei uma peça de teatro chamada Pin My
Places onde confessei coisas difíceis (terapia?) e onde repeti várias
vezes a frase: nunca tinha contado isto a ninguém. Porque é que eu,
que sempre tive dificuldade em falar sobre as coisas que me magoavam,
me expus dessa maneira? Confesso que escrevi inconsequentemente. E no
dia da apresentação do meu texto, senti- me culpada pelo excesso de
partilha íntima.
Pergunto-me porque te conto isto. Há-que confessar que não fui à aula em que se falou sobre este tema - contar ou ser, e, por isso não faço ideia do que trata. Contudo, como carrego esta culpa VS atração VS inquietação com o uso da minha biografia na construção artística/literária, tive o impulso de arriscar a desadequação.
Vou confessar: o que realmente me amedronta é o facto de eu não gostar de ler textos sobre a vida das pessoas. Assim como eu estou a escrever este. Fiz isto, fiz aquilo, aconteceu-me isto, gosto, não gosto, sofro, não sofro. Claro que todas as vidas são interessantes. Claro que a minha também é. É a forma que me desconforta. Aqueles artistas todos em quem pensei quando o Bucchieri criticou o uso da biografia, também falam deles mesmos. Falamos todos, não é verdade? De uma forma ou doutra.
Contudo eu escrevo assim. Confesso, partilho, recupero memórias, ficciono acontecimentos, exagero, minto.
Que fazer, leitor?
Estava a ler o artigo da wikipedia sobre a confissão. Dizia que muitas vezes confessamos algo a alguém por forma a criar laços com o receptor. Ou para obtermos informação do outro lado.
Que pensas disto, leitor? Sentes-te conectado comigo?
Se eu te pedisse, que informação pessoal me darias? O que te apetece contar-me?
Obrigada pelo teu tempo.
Mariana
PS: Quando tinha 15 anos ouvi uma rapariga dizer ao catequista que ela não se confessava a padres, confessava-se directamente a Deus. Foi um dos momentos mais marcantes da minha juventude. Que sacrilégio negar o interlocutor, a voz de Deus aos mortais, que auto-confiança, que rebeldia, que presença de espírito. Eu disse imediatamente: “Eu também só falo directamente com Deus” e livrei- me daquela confissão, não por minha iniciativa mas pela inteligência de outro.
Mas não me livrei da última confissão, aquela que teria de fazer antes da Profissão de Fé, último patamar do processo catequético. Dias antes da cerimónia, sento-me frente a frente ao padre (nunca tive o prazer de me sentar num confessionário verdadeiro, obscura pela divisória de madeira e rede, como nos filmes) que me pede que lhe conte o que pesa na minha consciência. Na altura eu já não acreditava em Deus e, na verdade, abominava todos aqueles processos, aquelas hipocrisias e aquela perda de tempo. Tinha já algumas frases preparadas para despachar o assunto e ir à minha vida. Mas, por alguma razão, que já não me lembro (foi há 15 anos, afinal) reflecti sobre aquela imagem: o que me pesa a consciência. O que me pesa na consciência. A minha consciência está pesada? Com o quê? E aquela imagem de ter um peso em cima da minha consciência, que eu imaginava estar instalada no alto da minha cabeça, intrigou-me. Fechei os olhos e tentei perceber se sentia alguma coisa a pesar-me na cabeça, mas não sentia nada. Passaram-se alguns segundos e comecei a sentir uma brisa, uma pequena corrente de ar que me arrepiou o pescoço e depois as costas até ao cóccix. Finalmente, tão focada estava na procura que finalmente senti: uma leve presença, mesmo na abóbada craniana, como se uma mão estivesse ali pousada, muito ao de leve, quase inexistente, mas ali, de facto. Arrepiei-me novamente e ouvi o padre a chamar por mim. Não queria perder aquela sensação, tinha de continuar focada. Era uma mão? Talvez fosse um objecto? Senti que o peso se redistribuiu ligeiramente e juro que senti dedos que me apertavam a testa. O padre chamou por mim e tocou-me na mão, fazendo com que a minha atenção se desviasse para ela.
Abri os olhos e disse-lhe: “sinto algo na minha consciência. É uma mão, mas não sei de quem é.” O padre respondeu-me: “uma mão na tua consciência? Podes explicar melhor?”
“Sinto uma mão, aqui” e devagar coloquei a minha própria mão por cima do crânio que afaguei como que a tentar recuperar a sensação de antes.
“Mas a consciência não fica aí”, respondeu o padre. “fica aqui” e colocou a sua mão sobre o meu peito.
Não quero ir para casa, disse-me.
Não. Primeiro disse-me Pedro. Só depois, mais tarde, já a conversa ia nos anjos, é que ele disse de repente Carreira. Lembrei-me. Pedro Miguel Carreira. Lembrei-me do meu nome.
Eu estava sentada no sofá da casa que fora dos meus avós.
Esta casa tem mais de 100 anos e foi construída pelas mãos dos meus avôs, avós, bisavôs, tios-avôs e outros familiares em segundo, terceiro e etc graus. Fica numa aldeia tão pequena que não aparece no Google Maps. Para lá se chegar só ao acaso. Ou só de propósito.
Trabalhava no meu projeto HOME, e pensava sobre o que me responderiam os meus familiares se lhes perguntasse o que fizera aquela casa ser o seu lar. Ao mesmo tempo sentia a comichão da vontade de escrever uma crónica. Já tinha decidido que ia, naquele dia, dali a umas horas, oferecer-me para escrever uma na aula homónima. Só não sabia sobre o quê.
Os meus pensamentos foram interrompidos por um vulto branco que passou na janela à minha frente. Fiquei alerta, levantei as orelhas e escutei. Pensei é a Keli. Mas segundos depois ouço a Keli na cozinha de volta de pratos e copos. Volto a atenção para o exterior e sinto movimento. Levanto-me velozmente, saio da sala, choco contra a Keli e abro a porta da casa.
Está um homem no pátio. Está um homem de t-shirt branca, calças de fato de treino com calções por cima e um gorro na cabeça no pátio da casa dos meus avós..
Pergunto quem é? Precisa de alguma coisa?. Diz-me sim, preciso de me esconder.
Esconder? Posso beber água daquele garrafão ali?
Nós damos-lhe um copo de água. Não, eu quero desta aqui do garrafão, essa deixa-me confuso, e bebe do garrafão.
Olha-me e pergunta Posso ficar aqui? Preferia que não.
Senti medo. Olhei para trás, a Keli estava atrás de mim, na soleira da porta, com olhos arregalados e uma ruga nova entre as sobrancelhas.
Como te chamas? Pedro.
Podemos ir falar lá para fora, para a estrada? Não! Não posso ficar
aqui? Quero ficar aqui.
Sentia a Keli atrás de mim, e esse facto dava-me sustento para enfrentar a situação. Pensei: Se nos atacar, se vier para cima de mim, eu chego-me pra trás e estou dentro de casa. Perto da porta está o móvel das loiças e, na gaveta, estão as facas. Ele é grande e forte mas nós somos duas. E temos facas. Está tudo bem. Está tudo bem, Mariana.
Eu estou possuído por um demónio.
Um demónio? Ou então por um anjo.
Estás a gozar comigo? Não.
E eu não sabia o que achar daquele não.
Onde é que moras?
Não me respondeu.
Sinto-me seguro aqui. Posso ficar aqui? Não quero ir para casa.
Preferia que não.
És cristã? Não.
E tu, és cristã? A Keli abanou a cabeça negativamente.
Quem são os teus pais? Eu cometi um crime.
Não me sinto confortável que te aproximes. Ah disse ele.
Estivemos a conversar durante uns 30 minutos. Finalmente consegui arrancar-lhe o telefone da mãe, Emília. Vive lá em cima, é a mulher do Vitalino, o criador de coelhos.
Primeiro chegou a Emília, depois o Vitalino, depois o Samuel, o seu irmão.
Pedro não queria sair do pátio.
Vamos para casa, insistiam os pais. Não quero, tenho medo.
A certa altura perguntou aos pais calmamente Eu matei pessoas, não matei? Não, amiguinho, não mataste ninguém. Não havia outro irmão? Não. Só tu e o Samuel.
Voltou a perguntar-nos se éramos cristãs. Perguntou ao Pai. Sim filho, sou cristão, e a mãe também.
Quero falar com um Padre. Liga ao Padre. Liga ao Padre. Ligas ao Padre? Podes ligar ao Padre? O padre não atende mas ele tem o meu número, depois liga-nos de volta, filho.
O Padre João? Voltou para a terra dele.
Eu queria falar com o Padre João. Pedro, vem aqui abrigar-te, está a chover. Não quero, quero ficar à chuva.
Vitalino, o pai do Pedro, tentava consecutivamente convencer o filho a sair do pátio e a entrar na carrinha. Mas não conseguia. A mãe dizia-lhe Queres ficar aqui mais um bocadinho? Quero. Então senta-te aqui, sai da chuva.
Enquanto eu estiver aqui, não pára de chover, disse o Pedro.
Numa das idas à carrinha, Pedro volta com um terço nas mãos e pede para que rezem com ele. Estão com ele o pai e a mãe, à chuva, a rezar uma e outra e outra vez Avé Maria cheia de Graça, Senhor é Convosco. Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, Amén. (O software onde escrevo esta crónica, não reconhece Amén como uma palavra. Sugere-me Amém, Améns, Amin, Amon, Amun e Axén.)
Enquanto chover, eu não posso parar diz o Pedro. E continuam uma e
outra vez a rezar não sei por quê.
A imagem desta família comove-me de tal forma que não consigo segurar
as lágrimas. Choro e o Pedro olha-me nos olhos e vê que eu choro.
Foi um dos dias mais difíceis dos últimos tempos. Depois de ter vagueado pelo centro, sentada em frente ao Teatro Nacional, e tentando segurar o filtro negativo com que olhava tudo e toda a gente, entro na minha igreja favorita de Lisboa, a igreja de São Domingos no Largo de São Domingos, junto ao Rossio. Nenhuma igreja me toca como aquela. Talvez não me impressionasse tanto se não estivesse queimada do incêndio de 1959. O incêndio fora vontade de Deus e, por isso, apenas o tecto está restaurado.
Era quinta feira de Endoenças e a missa estava a começar. Sentei-me
nos bancos mais próximos da saída, para poder desistir a qualquer
momento. Enquanto assistia à missa pensei muitas coisas:
Entendo a sedução do sacerdócio. Dedicar a vida a uma instituição já estruturada. Segurança, respostas.
Compreendo.
Como é o dia-a-dia de um padre?
Já não se passa o cesto do dinheiro na missa? Porquê? Desde quando? Ou é do Covid?
Como é que as pessoas sabem as músicas de cor?
Será que os padres têm brancas como no teatro?
Quando eu era pequena queria decorar o que se diz na missa, para poder participar como toda a gente, mas quase nunca entendia o que as pessoas murmuravam.
Tenho muitas vezes esta sensação de que a igreja é um sítio
desconfortável, frio e triste. Onde conseguimos ouvir os pequenos
acidentes ecoarem muito mais alto, onde temos de ter cuidado, onde não
tiramos o casaco, onde ficamos com sono. Ao mesmo tempo há um conforto
qualquer existencial. Não ouvia uma missa do início ao fim há mais de
10 anos. Sinto uma liberdade incrível, que nunca tinha tido, em não
ter de cumprir os seus rituais. Estive sentada do início ao fim, não
disse uma única palavra, não produzi um gesto.
A certa altura, creio que parte dos pressupostos pascais, o Padre e a
sua trupe caminham para uma formação de procissão e lentamente
atravessam a igreja. Passariam mesmo ao meu lado. À frente vinha uma
menina de 15 anos no máximo, e um homem de 80 anos no mínimo.
Carregavam os turíbulos de incenso. Atrás os acólitos, os padres e
outras figuras misteriosas. No fim, o Padre principal que celebrava a
missa.
A imagem da procissão comove-me de tal forma que não consigo segurar as lágrimas. Choro e o Padre olha-me nos olhos e vê que eu choro.
Tive medo que quisesse falar comigo no final da missa, como aconteceria num filme. Saí antes. Não queria ter de lhe dizer que não acreditava na igreja católica, mas que não compreendia o poder que ela ainda tinha sobre mim. Que não compreendia o conforto que as pessoas sentiam na repetição infinita das mesmas palavras, mas que não conseguia evitar dizê-las também. Que não conseguia aceitar que aquele mundo tão difícil para tanta gente, fosse uma criação de um Deus de amor.
Ou talvez tivesse medo que, na realidade, ele não viesse ter comigo,
como nos filmes.
Anjos, demónios, culpa, oração.
Culpa.
Uma culpa tão assoladora que pode enlouquecer uma pessoa.
(Amén.)
A crónica encontrou-me em casa, no lar, num lar.
Um lar sem medo, Pedro.
Vejo um homem da minha janela.
Pinta um muro no telhado do prédio à minha frente.
O homem que pinta o muro de cor de tijolo está a arranjar aquele telhado há mais de uma semana. Está de tronco nu, está suado, está exposto. Daqui vejo o quão exposto está, quão tão facilmente poderia cair. Dali até ao chão são, diria, 50 metros, mas esse número se calhar é absurdo, nunca soube adivinhar distâncias. Para chegar a todos os cantos do muro e caminhando sobre telhas, o homem tem de dobrar o corpo, contorcer-se, esticar-se, arrastar o balde, voltar atrás para pegar na trincha, limpar o suor, esconder o sol forte com o ante braço, parar para descansar, voltar ao início. Tem as costas escaldadas, só as costas. Estão da cor da tinta. A mesma cor arrasta-se para os calções, na zona das nádegas, onde limpa as mãos sujas quando pára para ver o trabalho que ainda falta fazer.
Às janelas deste prédio estão agora duas pessoas.
No que imagino ser o segundo andar, a última janela do lado direito tem uma pequena varanda com 3 ou 4 vasos e um estendal torto. Estende a roupa um homem robusto de bigode e cara simpática. Sempre que há comoção na rua, aparece ele para assistir, como se fosse um filme. Observa atentamente a cena e reage aos diferentes acontecimentos com expressões faciais sinceras e marcadas. E eu observo-o a ele a observar até que a diversão acalma e ele volta para dentro, fundindo-se o seu corpo com a escuridão da invisibilidade.
Em baixo, mas uma posição para a esquerda, está agora uma mulher idosa, com a janela fechada e os estores a meia altura, que observo com esforço. É comum ver dois gatos a apanhar sol deitados em cima de uma cómoda ou mesa encaixada no recorte da madeira. Mas agora, a cena é ainda mais ternurenta. A mulher tem nos braços um dos seus amados gatos que ela balança como se fosse um bebé. Olha para ele e sorri-lhe. Por vezes, noutras ocasiões, vejo-lhe apenas a mão a afagá-los da cabeça à cauda, uma e outra vez, para deleite do felino.
No extremo oposto do meu pequeno apartamento, tenho a sorte de ter meia vista sobre verde e azul. Verde das copas de árvores frondosas no pátio da Junta de freguesia e do Museu da Água. Azul do rio Tejo, a certa altura interrompido pelos prédios do Montijo. Daquela janela recebo o som de crianças a brincar o dia todo. Professoras zangadas, concurso de gritos, choros, discussões acesas sobre o que brincar a seguir. Ao fim do dia, à medida que as vozes das crianças se vão extinguindo, chegam os morcegos. São sempre três ou quatro pequenos e rápidos morcegos que fazem razias à minha janela. Um deles, em particular, acho que já o conheço. É o que chega mais perto da janela, o que chega primeiro e o último a fundir-se com a noite.
As minhas janelas são-me muito queridas. Graças a elas, posso ver. Posso estar dentro e fora, ser ausente e presente, estar em casa, estar na rua. Posso ter acesso a pessoas a serem o que são quando acham que ninguém as vê, e assim, vislumbrar a Humanidade. A delas e a minha.